Essa semana fui ao Teatro Raul Cortez no Sesc 14 bis, assistir uma mulher de 95 anos, sentada em uma escrivaninha no palco, com uma luz acima da sua cabeça, algumas páginas e um copo d’agua em cima da mesa ler alguns trechos do texto A Cerimônia do Adeus, de Simone de Beauvoir.
Em um teatro lotado (e agradecida por ter conseguido um ingresso em uma disputa dramática no site do Sesc durante o trabalho algumas semanas atrás, já que os 10 mil ingressos disponibilizados para as sessões se esgotaram em poucas horas) ela inicia: “O homem é uma realidade finita que existe por sua conta e risco. No princípio, o homem é nada, e será nada até o que fizer de si mesmo”.
Tento buscar palavras para descrever as sensações durante aqueles 75 minutos em que a artista prendeu com-ple-ta-men-te a atenção de todas as pessoas ali presentes. Com uma entonação deslumbrante, uma interpretação surreal, uma lucidez catártica, Fernanda Montenegro desperta emoções do subsolo de nosso ser. Nada, nada na vida se iguala a sensação de ser tocada profundamente pela arte.
“Eu amei os livros. Eu amei apaixonadamente os livros e nunca mais os livros me abandonaram” ela repete durante a leitura e ali eu me emocionei absurdamente. Cada palavra dita, cada frase terminada era um misto de reflexões do que já vivi, li, experienciei. Do que foi, do que poderia ter sido, do que ainda será. As minhas disputas de pensamento diárias foram invadidas e eu ainda não consegui reorganizá-los. Talvez nem consiga.
“Vivi num mundo de homens, mas guardei em mim o melhor da minha feminilidade”.
Uma mulher de quase um século de vida lendo e nos fazendo refletir sobre liberdade, sexo, relações, maternidade, monogamia, velhice. Um texto publicado em 1981, há mais de quarenta anos por outra mulher tão afrente do seu tempo, em palavras que soam tão atuais.
Talvez tenha me impactado tanto essa leitura porque o texto não me era inédito. Conheço (de maneira bem superficial) um pouco da história de vida e da obra da feminista Simone de Beauvoir. Muito mais aprendi após a maternidade, tendo eu parido uma filha, hoje com 9 anos, em que mergulhei para descobrir o que seria uma “mulher independente” em um mundo tão, tão desigual.
Ninguém nasce mulher, torna-se mulher é uma de suas frases célebres, repetidas muitas vezes, e eu quis buscar entender para além das frases prontas. “Abandonei o projeto de uma confissão pessoal para me ocupar da condição feminina em sua generalidade” disse Simone em um dos volumes de suas memórias. Há mais de meio século ela argumentava que se as dificuldades são mais evidentes para uma “mulher livre", é porque ela escolheu a luta, não a resignação.1
Ainda hoje buscamos os caminhos para encontrar em nós mesmos a mulher que luta pela autonomia econômica, social, psicológica e intelectual.
Me lembro da frase que li no final do segundo tomo do Segundo Sexo, “A mulher independente”:
...a mulher. Desde que ela deixa de ser uma parasita, o sistema baseado em sua dependência desmorona: entre o universo e ela não há mais necessidade de um mediador masculino. A maldição que pesa sobre a mulher vassala reside no fato de que não lhe é permitido fazer o que quer que seja...
Hoje, quase quarenta anos após sua morte, discutimos projetos de Leis que buscam controlar o corpo e a autonomia das mulheres, misturamos política com religião e afundamos em um moralismo sem fim, e lá atrás Simone já atacava a ordem sexual dominante, pregava a liberação da contracepção e aborto, denunciava a violência das relações entre gêneros e desmontava os mitos do instinto materno, feminilidade e maternidade. 2
Então, acredito que realmente faça sentido quando ela diz para nunca nos esquecermos:
basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.
Voltando ao teatro naquela noite de quinta feira, me peguei tentando gravar forçadamente na minha memória aquele tom de voz, buscando um espacinho especial para imprimir às lembranças aquele texto falado. Alguns momentos da vida eu sei que estou vivendo a melhor parte. Faço um esforço danado para tentar registrar a sensação. o cheiro, o gosto. Emoções mais profundas que outrora eu nem conhecia: êxtase, felicidade, deleite, contentamento.
eu sei que vou lembrar dessa lágrima que cai enquanto eu escrevo por todo meu viver.
esse é o primeiro texto que publico aqui, já que tenho percebido que os textos curtos passíveis de serem publicados no Instagram não dão conta dos textões que eu preciso colocar pra fora. sejam bem vindes, peguem um café, água, vinho, ou nada, e sintam-se em casa. mas lembrem-se que não estão. rs
sejamos respeitosos nos comentários e reflexivos e críticos nas leituras. o que proponho a escrever aqui é um pouco do que vivi, muito do que senti e algumas dicas de coisas que acho que precisam ser compartilhadas. Então, aproveito e deixo a música que tocou no final da leitura do teatro que tanto me marcou:
Esse é o resultado do prime day por aqui, alguns livros que eu quero muito ler, estava esperando entrar em promoção. Todas leituras novas, não li nenhum desses ainda e vão furar a fila. Querem que eu fale sobre minhas leituras por aqui? As canetas é para me inspirar a voltar a escrever. Obrigada por me lerem até aqui. Até o próximo post.
Caderno especial, O segundo sexo, 70 anos depois. Editora Nova Fronteira. Texto de Mirian Goldenberg.
Cardeno especial, O segundo sexo, 70 anos depois. Editora Nova Fronteira. Texto de Mary Del Priore
Cheguei a ouvir a voz da Fernanda Montenegro com as aspas. Que lindo e único!
Amei o texto, Fernanda! Escreva sempre, por favor. Tão raro hoje a sensatez!